O argumento da meritocracia como inerente à sociedade de mercado é tão frágil quanto amplamente disseminado e crido. Os seus críticos costumam concentrar ataques quase exclusivamente na existência de alocação inicial desigual, tanto na história do capitalismo quanto na vida das pessoas, deficiência mais evidente do postulado. Obviamente, a simples existência de herança impede qualquer competitividade justa entre indivíduos, se acentuando com os séculos a distorção, de modo a que não existisse mais hoje nenhuma relação entre riqueza e esforço pessoais, ainda que um dia houvesse existido.
Mas, por algum motivo, esse aspecto gritante não é suficiente para demover a ideologia da meritocracia dos muitos corações que a ela se apegam. E nós, seus críticos, detemo-nos tanto nele, que esquecemos de uma outra falha ainda mais central dessa mesma ideologia.
No coração do mito capitalista está o pressuposto de que o empreendedorismo gera, necessária e exclusivamente, riqueza, sem considerar o sofrimento e destruição que o mesmo empreendedorismo igualmente pode gerar.
E não apenas pode gerar: tem gerado, historicamente. E, enquanto a geração de riqueza se transforma em lucro para o capitalista, a geração de sofrimento igualmente se converte em lucro para o capitalista.
Marco inicial do capitalismo, a Revolução Industrial inglesa do século XVIII teve como motor a indústria têxtil, que utilizava como matéria-prima o algodão produzido na América por mão-de-obra escrava.
"Depois da década de 1790, as plantações escravagistas do Sul dos Estados Unidos foram aumentadas e mantidas pelas insaciáveis e vertiginosas demandas das fábricas de Lancashire, às quais forneciam o grosso da sua produção de algodão bruto" (HOBSBAWN, Eric. A Era das Revoluções: 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 50).
O aumento sem precedentes da produção fez com que os ingleses conquistassem mercados externos a ponto de inverter a balança comercial com importantes regiões da Ásia, que até então exportavam mais para a Europa do que de lá importavam.
"Somente os autossuficientes e conservadores chineses ainda se recusavam a comprar o que o Ocidente, ou as economias controladas pelo Ocidente, oferecia, até que entre 1815 e 1842 comerciantes ocidentais, auxiliados pelas canhoneiras ocidentais, descobrissem uma mercadoria ideal que podia ser exportada em massa da Índia para o Extremo Oriente: o ópio" (HOBSBAWN, op. cit., p. 52).
Em outras palavras, o empreendedorismo inglês derrubou sua última fronteira pelo tráfico de drogas.
Já na parte final do século XIX, quando a disputa imperialista entre as nações europeias tornou um imperativo a abertura de novos mercados na África, a implantação da economia de mercado, com sua necessária oferta de mão-de-obra, dependeu da prévia destruição dos sistemas tradicionais ali existentes.
“De forma irônica, a contribuição do homem branco para o mundo do homem negro consistiu principalmente em acostumá-lo a sentir o aguilhão da fome. Assim, o colonizador pode decidir cortar árvores de fruta-pão a fim de criar uma escassez artificial de alimentos, ou pode impor uma taxação sobre a cabana do nativo, para forçá-lo a permutar o seu trabalho. Em ambos os casos o efeito é similar ao dos cercamentos da era Tudor, com sua esteira de hordas errantes” (POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro, Elsevier, 2000).
Escravidão, tráfico de drogas e fome, portanto, são alguns dos efeitos do empreendedorismo capitalista pioneiro, e isso tomando apenas alguns exemplos de seus primórdios. Para os indivíduos ou estados que empreendiam, o único critério de decisão era o retorno do negócio, como no caso do primeiro desses três exemplos:
"O algodão, portanto, fornecia possibilidades suficientemente astronômicas para tentar os empresários privados a se lançarem na aventura da revolução industrial (...)" (HOBSBAWN, op. cit., p. 52).
Se avançarmos pelos séculos XX e XXI, os exemplos de sofrimento humano e destruição ambiental se multiplicarão na mesma proporção própria produção capitalista de riqueza e bem-estar. E é de se esperar que até mesmo os teóricos liberais tenham percebido isso, incorporando à sua doutrina o importante conceito de externalidades.
Mas esse conceito, em termos normativos, não faz senão analisar os efeitos deletérios da empresa capitalista em sua própria lógica. Ou seja, quaisquer efeitos negativos da ação econômica humana deverão ser aceitos unicamente se seus efeitos positivos compensarem. Tudo pode ser traduzido em custos e receitas, ainda que de um ponto de vista social e não apenas privado.
E, aqui, enfim, chegamos ao verdadeiro ponto central do debate político e filosófico contemporâneo. A questão não é se existe competição justa no capitalismo. Todos, do bilionário aos que querem seu fim, passando pelo remediado que defende os interesses do super rico, sabem que não existe competição justa e igualitária neste sistema. A meritocracia é apenas uma ficção aceita por sua utilidade como primeira linha de defesa do status quo, papel que tem desempenhado muito bem, na medida em que mantém o debate em seus próprios termos.
Mas a verdadeira diferença entre os defensores e críticos do status quo – esquerda e direita ideológicas, se assim quisermos chamar – é o justificar-se ou não o sofrimento de muitos pela riqueza e bem-estar de poucos. Os defensores do sistema julgam que sim. Assim, se a produção de sofrimento e destruição para muitos é grande, a produção de riqueza e bem-estar para poucos deve aumentar de modo a compensá-la. Nega-se essa lógica somente ao se afirmar que a produção consciente de sofrimento e a destruição de recursos naturais preciosos não é aceitável em hipótese alguma.
Assim, o avanço civilizatório não seria possível pela competição justa no capitalismo, apenas pela negação da mesma competição. A produção de riqueza e bem-estar econômico continuarão a existir em qualquer forma de sociedade, mas deverá estar sujeita aos seus valores e limites, e não o contrário. Para isso, é preciso uma consciência coletiva pós capitalista.
Excelente e necessária reflexão!